"O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir." Milton Santos - Geógrafo..

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Monte Erebus

Monte Erebus: um mundo invertido na Antártica

Enquanto os cientistas tremem de frio, micróbios proliferam no solo de um vulcão

Um estudo de contrastes: gelo e neve em primeiro plano e lago de lava embaixo. O Erebus é um dos muitos vulcões que têm um lago permanente. No momento em que esta foto foi tirada, o vulcão estava quieto, mas com frequência entra em erupção e lança bombas de lava a grandes altitudes.

A cena: uma barraca no monte Erebus, um vulcão ativo na ilha Ross, na Antártica. É uma tenda quadrangular como as que o capitão Robert Falcon Scott trouxe em suas expedições à Antártica mais de um século atrás. No centro, tem altura suficiente para que uma pessoa de mais ou menos 1,65 metro fique em pé e, no topo, há duas aberturas que servem de chaminé. Essa tenda específica é ocupada por duas pessoas; ambas estão enfiadas em seus sacos de dormir. Entre elas há uma caixa grande, um fogareiro Primus, duas garrafas térmicas e dois pares de botas pesadas. Está frio demais para ler; mesmo de luva não dá para segurar nenhum livro. Por isso, todos os reclusos – inclusive eu – conversam para passar o tempo. “Quais são seus micróbios favoritos?”, pergunto, espanando o gelo em flocos de meu saco de dormir.
“Só podem ser as estrambóticas arqueias”, responde meu companheiro, Craig Herbold, um americano trintão, corpulento, fã de música eletrônica japonesa e da astrobiologia, o estudo de como pode ser a vida em outras partes do universo. Ele é pesquisador pós-doutorando da Universidade de Waikato da Nova Zelândia, e o membro mais novo de uma equipe de três pessoas que vieram para cá em busca de formas de vida nos solos quentes do vulcão. É isso mesmo. Ele veio a um dos lugares mais frios da Terra procurar seres que prosperam no calor.
O grupo de Shackleton subiu o Erebus em cinco dias e meio. Durante a façanha, enfrentaram uma nevasca que os manteve nos sacos de dormir por mais de 24 horas, sem nada para beber e a temperaturas abaixo de -34ºC. Um homem desmaiou de exaustão e outro sofreu uma lesão pelo frio que o fez perder o dedão do pé. Nossa jornada foi menos árdua: fomos de helicóptero.
Éramos oito. Havia o já mencionado Herbold e os dois membros mais velhos de sua equipe de pesquisa: Craig Cary, um americano expansivo, e Ian McDonald, um inglês discretíssimo, ambos biólogos da Universidade de Waikato e veteranos de pesquisas na Antártica. Antes de iniciar seu trabalho no continente gelado, Cary lecionava na Universidade de Delaware, na costa nordeste dos Estados Unidos, e descia com regularidade ao fundo do mar para estudar organismos que vivem em chaminés oceânicas profundas. Stu Arnold e Al Moore, dois neozelandeses queimados de sol e vento, de ombros largos e sotaque pronunciado, eram encarregados de, nas palavras de Arnold, impedir que fôssemos “massacrados pela montanha”. Havia Carsten Peter, o fotógrafo, e seu assistente, Daniel Jehle, ambos das serras do sul da Alemanha. E eu. Nas palavras de Jehle, apenas “uma garota”.
Apesar da localização remota e do clima brutal – temperaturas médias de -20°C no verão e -50°C no inverno –, o Erebus é um vulcão muito estudado. Desde 1972, uma equipe de vulcanólogos, há tempos chefiada por Philip Kyle, professor de geoquímica do Instituto de Mineração e Tecnologia do Novo México, passa parte do verão austral na montanha, investigando questões como natureza e frequência das erupções, tipos de gás que emite e idade das rochas.
A biologia do lugar, contudo, não é tão bem documentada. Isso acontece, em parte, porque no Erebus a maioria das formas de vida é microscópica. (As principais exceções são alguns musgos e cianobactérias – bactérias que, como as plantas, transformam a luz solar em energia e podem formar colônias grandes o suficiente para ser vistas.) Até pouco tempo atrás, o estudo de micróbios desconhecidos era problemático: não se podia criá-los em laboratório nem descrevê- los e muito menos estudá-los.
Mas hoje não é mais preciso cultivar micróbio em laboratório para aprender algo sobre ele. Há mais ou menos uma década, vêm sendo desenvolvidas técnicas genéticas que permitem caracterizar uma comunidade inteira de micróbios só por seu DNA, o que nos dá um quadro bem mais completo do que vive em qual lugar. Assim, embora tenha sido encontrada vida nos solos quentes do Erebus no começo dos anos 1960, só agora conseguimos avançar bastante nesse estudo.
Os solos quentes do Erebus são pontilhados no topo, ainda mais no local conhecido como crista Tramway. O calor derrete o gelo e cria pequenos trechos de solo quente e úmido que abrigam comunidades de musgos e micróbios.

Um membro da equipe investiga as passagens da caverna Hut. Dentro das cavidades,o ar úmido e quente do vulcão congela, criando cristais de gelo de formas variadas conforme sopram as correntes de ar.

Daí vem o xis da questão: esses trechos são minúsculas ilhas de calor em um mar de frio. Embora os solos sejam quentes – suas temperaturas podem chegar a 65°C –, o ar logo acima não é. Além disso, a menos de 1 metro de distância do ponto quente, a temperatura do solo cai drasticamente. A acidez também muda. No ponto quente, o solo é neutro; a pouca distância, ácido. E estéril: frio, seco, ácido e hostil à vida.
A presença dessas ilhas inspira questões intrigantes. Que micróbios vivem ali, e de onde vieram? Micróbios podem viajar no vento por centenas de quilômetros. Será que provêm dos solos quentes de vulcões mais ao norte? Ou será que os micróbios do Erebus são únicos, e – o que seria fascinante – terão vindo das profundezas da Terra? A biosfera da subsuperfície, onde esses organismos vivem em rochas muito abaixo da superfície terrestre, é um dos ecossistemas menos conhecidos e estudados do planeta. Mas pode ser um dos maiores – algumas estimativas indicam que um terço de todas as bactérias da Terra talvez viva lá – e dos mais estranhos. Esses micróbios não ganham a vida extraindo energia solar. Eles a obtêm de outras fontes, como do ferro ou do hidrogênio. Esse ecossistema profundo e escuro também poderia ser um dos mais primitivos do planeta e abrigar formas de vida que há muito tempo vêm seguindo um caminho evolucionário separado. Com todas essas fascinantes questões em nossos pensamentos, partimos.
Nossa jornada começa no escritório da Antártica Neozelandesa, em Christchurch, onde um sujeito jovial chamado Chris nos fornece roupas: segunda pele, duas calças de fleece (uma grossa, outra fina), duas jaquetas de fleece (idem), dois macacões à prova de vento, uma jaqueta leve de plumas sintéticas, um corta-vento, uma pesada jaqueta de plumas verdadeiras, dois pares de bota, dois de meia grossa, chinelo de pluma para usar dentro da barraca, nove pares de luva com e sem dedos, chapéu, balaclava, cachecol tubular para o pescoço, óculos de neve e óculos de sol. Como a Antártica é um deserto, embora gélido, Chris também dá a cada um de nós um cantil de boca larga, enfeitado com o comando hidratese ou morra!, acompanhado de uma lista dos sinais mais comuns de desidratação.
Assim equipados, seguimos para a ilha Ross em um avião de transporte militar americano, com alguns outros passageiros e caixas enormes com o aviso: “Não congelar”. Aterrissamos em um trecho de gelo marinho e desembarcamos em uma paisagem branca, azul e dourada. Branco: gelo, neve, nuvens. Azul: o céu, certos tipos de gelo e, onde é visível, o mar aberto. Dourado: reflexos do sol no gelo ou nas nuvens. Não temos muito tempo para contemplar. Logo vem a nosso encontro um homem com um gorro de pompom enorme e nos leva de carro até a base Scott, a estação de pesquisa neozelandesa na Antártica, para nosso treinamento.
Mesmo nestes tempos em que, se algo dá errado, existe chance razoável de resgate, os aspectos práticos de uma viagem pela Antártica são minuciosos e complexos. “Não faça suposições”, diz Arnold no primeiro dia de nosso treinamento. “Teste todo o seu equipamento.” McDonald inclina- se para o meu lado e comenta: “Certifique-se de que sua garrafa térmica funciona – se mantém a água quente a noite inteira e não vaza.”
“Ainda tem o cantil que compramos na Nova Zelândia?”, pergunta-me Cary. Digo que sim. “Leve com você. Será mais fácil beber nele quando estiver no saco de dormir. Se tomar naquele que lhe deram, poderá derramar água em você – e, aí, a encrenca será grande.”
Encrenca porque molhado significa frio. Na melhor das hipóteses, roupas e saco de dormir molhados roubam o calor de sua pele. Na pior, viram uma mortalha de gelo. Um dos primeiros exploradores descreveu a ocasião em que saiu da barraca com as roupas um pouco úmidas de suor e da respiração: “Assim que saí, ergui a cabeça para olhar em volta e constatei que não podia movê-la de volta. Minhas roupas haviam congelado e endurecido naquela posição – em 15 segundos.” Melhor nem pensar nisso.
Checamos então os cantis e as garrafas térmicas. Saímos a passeio para testar as roupas – cada pessoa tem sua combinação mais adequada – e fomos comprar máscaras para andar de snowmobile na vizinha estação McMurdo, a base americana. Também ali, um motoqueiro tatuado de nome Toby nos ensinou a montar no snowmobile e explicou como trocar as velas de ignição. Voltamos à base Scott e arrumamos os apetrechos de dormir. Por baixo, colchonete de espuma. Em seguida, colchão inflável. Por cima, manta de pele de ovelha. “Nós, kiwis [apelido dos neozelandeses], adoramos ovelhas”, diz Arnold.

É meia-noite, mas, com tanta claridade, é difícil parar de explorar as torres de gelo. Esta é uma das maiores do Erebus, mas seu flanco ruiu com o fluxo de calor e umidade vindo de baixo. Ao longe, à direita, a península Hut Point espicha-se na direção do monte Discovery.

Por fim, dois sacos de dormir de pena de ganso, um dentro do outro, mais forro de fleece polar, revestidos de uma capa protetora. Isso feito, pesamos tudo, nós mesmos inclusive, pois em um helicóptero é fácil exceder a carga. E esperamos. Na noite marcada para nosso voo montanha acima, uma grande nuvem assentava- se no cume. Só no fim da tarde seguinte, o tempo abriu o suficiente para partirmos.
Primeira parada: acampamento da geleira Fang, contígua ao vulcão, uns 3 mil metros acima do nível do mar. Ali deveríamos passar vários dias, habituando o corpo à altitude. Fang (“Presa”) situa-se em uma plataforma de neve no alto da geleira, com vista para as montanhas do continente antártico de um lado e para o cume nevado do monte Terror do outro. A presa de rocha escura que dá nome ao acampamento se projeta logo adiante, na direção do céu; é um vestígio de uma caldeira que ruiu há centenas de milhares de anos. Quando o vento amaina, o silêncio é total. Sem máquinas, aves, insetos nem folhas farfalhando. Sem interferência. Além disso, nesta época do ano, o sol não se põe, e está sempre muito claro – claridade de encosta de gelo e neve sob o céu. A única diferença entre o meio-dia e a meia-noite é que, à meia-noite, as sombras são mais longas, e o ar, mais frio.
Mas o acampamento Fang é apenas isso, um acampamento, uma série de barracas montadas na neve. Já a nossa base final de operação, a cabana no baixo Erebus, possui duas pequenas construções (a cabana e um galpão), com eletricidade, aquecimento, cadeiras, mesas e fogão.
Acampar nesse meio tem suas dificuldades. Por exemplo, se você não comer em poucos minutos logo que a comida ficar pronta, ela congela. Um dia, não engoli rápido meu cereal matinal e tive de lascá-lo para tirar da tigela. O único modo de manter as coisas aquecidas é com o calor do corpo. Ou seja, devem ficar com você no saco de dormir. E foi assim que tive de dividir meu leito com protetor labial, hidratante, pasta de dente, lenços umedecidos, câmera, relógio, canetas, chinelo, dois pares de luva, duas garrafas de água, três baterias e três garrafas coletoras de urina.
Garrafas coletoras de urina? Para se aclimatar à altitude, temos de beber de 6 a 8 litros de água por dia, os quais têm de ser obtidos da neve derretida. Beber tanto líquido tem óbvias consequências. Por isso, em Fang, há um banheiro em uma barraca. Mas, para chegar lá, é preciso ir totalmente vestido; não dá para sair de pijama a 40 graus negativos. Assim, por conveniência, ficamos na barraca e urinamos em garrafas. Quando elas se enchem, vamos à barraca-banheiro e as esvaziamos. Se congelarem, não tem jeito.
Nesse ínterim, não há nada a fazer em Fang além de bater papo com o colega de barraca e derreter neve. Herbold e eu acabamos falando sobre as estrambóticas arqueias. “São estranhas demais”, diz Herbold. “Não consigo entendê-las.”
As arqueias compõem um dos três ramos principais, ou domínios, da árvore filogenética. (Os outros dois são as bactérias e os eucariotos, organismos com núcleo nas células, como as plantas, os fungos e os animais.) E, embora as arqueias também vivam em lugares corriqueiros, como o mar aberto, têm fama porque são extremófilas: formas de vida que prosperam nos mais radicais ambientes que este planeta pode oferecer – ácido fervente, por exemplo. Assim, não é de surpreender que elas estivessem à espreita naqueles solos quentes do monte Erebus.
Essas arqueias antárticas, porém, são um tanto misteriosas. Encontradas em solos que o grupo coletou em viagens anteriores ao Erebus, até agora elas são conhecidas apenas por sequências de DNA, as quais têm pouca semelhança com as das arqueias descobertas em outras partes. Isso sugere, talvez, que elas de fato vêm seguindo o próprio curso evolucionário há muito, muito tempo. Será que provêm da subsuperfície profunda? É cedo demais para afirmar.

Em uma noite clara, a principal cratera do vulcão permanece quieta, emitindo apenas algumas lufadas de vapor. A cratera contígua está extinta. Mais além, uma onírica paisagem de gelo marinho e oceano estende-se até as montanhas e os vales do continente antártico

“Nós as encontramos na crista Tramway, logo abaixo das esteiras de cianobactérias”, diz Herbold. “Mas não sabemos nada de como elas vivem.” Faz uma pausa, depois acrescenta: “As esteiras de cianobactérias são nojentas. Parecem um emaranhado de cabelo vomitado no chão”.
Enquanto conversamos, começa a ventar mais forte. Muito forte. Logo o barulho está alto demais para ouvirmos um ao outro. Nas 15 horas seguintes, o vento arremessa cristais de gelo contra a barraca, chacoalha e estremece as paredes. Não se pode fazer nada além de permanecer aninhado no saco de dormir, ouvindo.
É um alívio quando, dois dias depois, somos considerados aclimatados, o céu está limpo e um helicóptero barulhento aparece no céu.
O voo de Fang até a cabana no baixo Erebus é rápido, mas nos deixa em uma paisagem diferente. Acima, a cratera do vulcão, fumegante. Duas construções, a cabana e o galpão. Um conjunto de painéis solares. E um renque de torres de gelo de formas fantásticas. A maior lembra um astronauta, as outras parecem segui-lo em procissão. Não sou só eu quem vê figuras nas torres de gelo. Os homens de Shackleton tiraram uma foto deles mesmos com uma que acharam parecida com um leão. E deduziram que as torres de gelo indicavam locais de fumarolas – aberturas por onde o vulcão libera gases quentes e úmidos. Quando a umidade entra em contato com o ar frio austral, congela, formando estruturas que podem atingir 10 metros de altura.
A cabana no baixo Erebus é simples: um cômodo e uma antecâmara para comida congelada. Mas, comparada à de Fang, é um hotel de luxo. Eis uma noite típica: acima do aquecedor, uma fila de luvas secando. Herbold está em um canto, esterilizando o equipamento que será levado a campo no dia seguinte. McDonald traz um barril com neve para fazer mais água. Cary comenta que o Erebus é parte de um estudo mais amplo sobre os solos quentes vulcânicos. Eles já têm solos de outros vulcões da Antártica, foram a Yellowstone no verão passado e pretendem ir em breve à Costa Rica. Jehle está cozinhando. Peter permanece preocupado com suas câmeras. Arnold fala com a base Scott pelo rádio. Moore, do lado de fora, conserta um snowmobile. E eu lavo louça e penso na imensidão da paisagem.
Boa parte do trabalho de campo científico é maçante. Mas, no Erebus, ele nos leva a lugares espantosos. Vejamos três cenas.
Na primeira, com correias e capacete, descemos por cordas e escadas de mão até uma caverna de gelo conhecida como Warren, que foi escavada pelo vapor do vulcão. Desafivelamos as correias a uns 12 metros abaixo da superfície da montanha. O piso é úmido, mole e rochoso; as paredes, azuis e brancas de gelo. Viemos buscar uma sonda térmica, uma das 23 que o grupo deixou na montanha um ano antes, na esperança de determinar as variações de temperatura do solo e, com isso, saber se aqueles ambientes são estáveis. Conforme nos afastamos da entrada, a luz vai diminuindo, e recorremos às lanternas. Nota-se logo que quaisquer micróbios que vivam ali não dependem do sol. Agora entramos em uma caverna repleta de aglomerados de delicados cristais pluriformes que rebatem nossa luz. Paramos e contemplamos, maravilhados. Moore desaparece em um corredor e, após alguns minutos, grita. Ele encontrou a sonda.
Na segunda cena, estamos na borda da cratera do monte Erebus. Para chegar ali, subimos tanto quanto possível de snowmobile, depois seguimos a pé pela encosta íngreme e escorregadia de seixos, uma mistura vítrea de pedra-pomes e “cristais do Erebus”, grandes pedaços oblongos de feldspato lançados em bombas de lava pelo vulcão. É um belo dia: temperatura a -25ºC mais ou menos, vento brando, céu sem nuvem, visibilidade ampla. E o vulcão está quieto. A cratera, com frequência enevoada por turbilhões de vapor, hoje nos permite ver o fundo, a 230 metros de distância, com o lago de lava de fulgor avermelhado. É uma visão meio sobrenatural, como olhar um portal para o centro da Terra.
O ar está rarefeito, e o andar, lento. Visto uma camisa térmica, leggings térmicos, perneiras de lã, calças de fleece, macacão pesado, colete de pluma, jaqueta de fleece, duas jaquetas de pluma, dois pares de meia, bota pesada, três pares de luva, balaclava, chapéu, máscara de snowmobile, cachecol tubular, óculos de esquiador e dois capuzes. Uma parafernália. Volumosa e desajeitada com tanta roupa, mas aquecida – contanto que continuemos a nos mover.
 A luz do sol infiltra-se no teto abobadado de uma caverna de gelo no Erebus, o vulcão ativo mais austral do planeta.

Mas paramos. Herbold está de joelhos, cavando, procurando outra sonda térmica. Tomara que a encontre logo; quero voltar a me mexer. Tenho uma súbita sensação de vulnerabilidade, de estar em uma paisagem que não é benigna.
Na terceira cena, a cabana no baixo Erebus. Lá fora, uma tempestade turbilhonante. A porta se abre com estrondo. Arnold e Moore irrompem na cabana, jaquetas geladas, rostos sérios. Arnold joga uma picareta de gelo na mesa. Está quebrada; o frio cortou fora a parte de cima. Não haverá escalada no gelo naquela tarde. Mas ele avisa que podemos entrar na maior das torres de gelo vizinhas – a que parece um astronauta – e extrair de seu interior um cerne de gelo.
Lá dentro, o ar está úmido e quente. O solo é rochoso, com uma camada de gelo pulverizado. Vê-se o céu através de uma abertura lá no alto. A broca da furadeira parece um pirulito gigante. Com quase 1 metro de comprimento, é amarela com um filete laranja berrante em espiral. Requer dois homens para manejá-la: um para mantê-la firme na posição, o outro para empurrá-la contra a parede da torre. O interior da broca é oco e, quando introduzido, enche-se com um cerne de gelo, como um descaroçador de maçã é preenchido com o cerne da fruta.
Sucesso! Arnold e Cary removem o cerne de gelo da broca da furadeira e o guardam em uma bolsa. Esperamos que essas amostras contenham micróbios que vieram do interior do vulcão e congelaram no gelo, o que nos daria um vislumbre da vida microbiana na chaminé abaixo.
Duas semanas após subir a montanha, descemos. Finalmente. Alguns dias depois, McDonald, Cary e eu voltamos à Nova Zelândia carregados de caixas de amostras destinadas ao laboratório, “onde o verdadeiro trabalho é feito”, diz Cary. Pouco antes do fim do voo, um homem aproxima- se de McDonald e de mim, e nos pergunta se não gostaríamos de ir à cabine do avião ver a aterrissagem. Sim, muito obrigada!
Pousamos tranquilos ao pôr do sol. A iminência da noite é estranha, reconfortante – estamos famintos de escuro. Estranhamos, também, as cores vibrantes e saturadas da primavera na Nova Zelândia. É como voltar a um mundo em technicolor. Como voltar à Terra.

 Um conjunto de cordas e escadas facilita o acesso à caverna Warren, um labirinto de passagens derretido no gelo pelo calor do vulcão. Pequenas correntes de arca usaram os recortes à entrada da caverna.

 A equipe de microbiologia prepara-se para extrair amostras dos solos quentes do vulcão. Para proteger as formas de vida nativas, os pesquisadores fazem uma assepsia da bota borrifando etanol e usam traje esterilizado por cima da roupa de frio – ficam parecendo monstruosos homens das neves.

O neozelandês Stu Arnold firma a broca enquanto o microbiologista americano Craig Cary mira a furadeira na parede da torre de gelo. Momentos depois, gritos: eles extraíram um cerne de gelo perfeito. Torcem para que contenha micróbios que subiram das profundezas do vulcão e congelaram na torre.

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